quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A África Perante os Acordos de Parceria Económica


Quando os países desenvolvidos como a Grã-Bretanha e o Estados Unidos da América, ainda estavam em desenvolvimento, não implementaram nenhuma das políticas de livre comércio que actualmente preconizam. Seu avanço tecnológico foi garantido por políticas protecionistas.
Ha-Joon Chang, Prof. de Economia do Desenvolvimento na Univ. de Cambridge


Por coincidência, o I Fórum de Diálogo e Intercâmbio da Diáspora Guineense em Portugal, decorre na mesma data de um importante acontecimento, que muito tem a ver com a vida dos africanos em geral, e muito em particular com a questão das migrações, que é a II Cimeira União Europeia-África. Este facto, deu-me motivo para fazer uma abordagem das consequências que advirão para o continente africano, nomeadamente no domínio económico e consequentemente sobre os fluxos migratórios, com a aplicação da nova estratégia aprovada pelos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia em Dezembro de 2005, com o título: " The EU and Africa: Towards a Strategic Partnership " ( A União Europeia e a África: Para uma Parceria Estratégica ), e que servirá de base para a elaboração de dois documentos, "A Estratégia Conjunta" e de "O Plano de Acção" que moldarão a nova parceria entre a União Europeia e a África, e que deverão ser aprovados nesta cimeira de Lisboa.

Com a presente cimeira a Europa pretende introduzir profundas alterações, na sua política de cooperação com o continente africano, nomeadamente pondo fim, à filosofia que a norteou até agora, a chamada "cooperação assimétrica", ""em que eram concedidos vantagens aos países que foram antigas colónias europeias, sem exigência de qualquer reciprocidade. Esta filosofia cujo melhor exemplo é a cooperação UE - Países ACP ( África, Caraíbas e Pacífico ), que vigora desde 1975 com a assinatura da 1ª Convenção de Lomé, verá o seu fim em 31 de Dezembro do corrente ano, conforme está previsto no Acordo de Cotonu assinado em Junho de 2000. De um modo geral, o que estes acordos preconizavam, era a facilitação de entrada dos produtos ACP no mercado europeu, através de isenções, ou reduções dos direitos aduaneiros, sem que o inverso, isto é as exportações europeias beneficiassem desse tratamento. Por isso se chama, de cooperação assimétrica. As referidas convenções dão um tratamento preferencial aos países menos avançados ( PMA), para os quais se abria totalmente o mercado da União Europeia, através do princípio " tudo menos armas ".

Pretendia-se desse modo, incrementar o comércio externo desses países, com todos os benefícios daí advenientes para o desenvolvimento económico e social. Embora se possam fazer algumas críticas a essa cooperação comercial, nomeadamente quanto à existência de barreiras não pautais como sejam a complexidade na condição da sua utilização, o protecionismo regulamentar ( certificação de origem, e sanitária ) e agrícola europeia, que impediram que os países ACP tirassem partido dessas vantagens, pode-se dizer, que continha alguns aspectos benéficos para as economias desses países. Infelizmente, apenas alguns países souberam ou puderam tirar partido dessa facilitação, como foi o caso das Ilhas Maurícias e da Costa do Marfim. Este aspecto, serviu de pretexto para pôr termo à política de preferência, já que no dizer da UE, o balanço de mais de trinta anos da existência das convenções UE - ACP, não é encorajador, e não faz sentido prosseguir nessa linha de cooperação. Com efeito, a quota de mercado europeu dos produtos dos países ACP, passou de 7% em 1975, para os actuais 3%. Um outro factor que serviu de pretexto para o fim desse tipo de cooperação, é o facto do tratamento preferencial dado aos países ACP, não se coadunarem com as regras da Organização Mundial do Comércio ( OMC ), e esta exigir o seu fim.

Encontradas as "razões" para decretar a morte da Convenção de Lomé ( Acordo de Cotonu ), a União Europeia propõe em sua substituição os Acordos de Parceria Económica ( APE ) a serem celebrados com as seis regiões de integração económica regional, dos países de África Caraíbas e Pacífico a saber: região das Caraíbas, região do Pacífico, e quatro regiões em África ( CEDEAO - Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental + Mauritânia, CEMAC - Comunidade Económica e Monetária da África Central, SADC - Southern African Development Comunity e COMESA - Common Market of Eastern and Southern Africa ). Dos cinco pontos da agenda da II Cimeira UE - África, a saber 1) A Paz e a Segurança 2) A Democracia e os Direitos Humanos 3) O Comércio, as Infraestruturas e o Desenvolvimento 4) As Migrações 5) A Energia e as Alterações Climáticas, considero esta questão dos APE, a par da Democracia e Direitos Humanos, dos mais importantes, pelo impacto económico e social que irá ter no futuro do continente, e em particular nos países menos desenvolvidos. Ela será certamente abordada no ponto da agenda, Comércio, as Infraestruturas e o Desenvolvimento, e esperemos que os países africanos consigam se não a rejeição, pelo menos uma moratória na celebração dos referidos acordos, ou a inclusão de uma lista de produtos estratégicos a serem protegidos, e assim minimizar os efeitos nefastos dos APE nas nossas economias.

Mas o que são estes acordos de parceria económica, quais são os princípios que as norteiam e quais serão os impactos nos países africanos e concretamente para o nosso país a Guiné-Bissau? É isso que passaremos a analisar!

Os Acordos de Parceria Económica, baseiam-se no princípio do livre comércio, e têm caracter recíproco, isto é a abertura dos mercados africanos aos produtos europeus e recíprocamente a abertura do mercado europeu aos produtos africanos, em igualdade de circunstâncias. Trata-se no fundo, de pôr em prática, nos países em vias de desenvolvimento, um dos fundamentos do neoliberalismo, que desde os meados dos anos setenta do século XX, constitui a principal corrente do pensamento económico. Defende a União Europeia, sobretudo a Comissão, que desse modo, se criará nesses países um ambiente "virtuoso" que permitirá atraír investimentos, lutar contra a corrupção e a fuga de capitais. Se esses aspectos são importantes e indispensáveis ao desenvolvimento, a verdade é que os APE, têm o reverso da medalha, que são os impactos negativos sobre o tecido produtivo africano e consequentemente sobre o tecido social dos nossos países!

Vejamos alguns desses referidos impactos:

- impacto orçamental, devido ao desarmamento pautal, com fortes reduções e eliminação das taxas aduaneiras, que afectará os recursos dos países pobres, que têm nos direitos aduaneiros na importação o seu principal recurso financeiro;

- Impacto sobre a balança de transações correntes, provocando desequilíbrios cuja correcção, passará pela depreciação da moeda ou redução de gastos públicos;

- Impacto sobre o sector agrícola, pondo em causa a agricultura de subsistência, cuja existência e desenvolvimento, constituem o elemento-chave para o combate à pobreza, sobretudo em países predominantemente agrícolas;

- Impacto sobre o sector industrial, que poderá levar à desindustrialização, com o desaparecimento das pequenas e médias empresas, incapazes de competir com os produtos importados;

Quando o regime de livre comércio entrar em vigôr, a grande maioria dos países africanos não estará em condições de o suportar, devido às debilidades que as suas economias apresentam, nomeadamente nos domínios alimentar, de educação, de saúde, de infraestruturas, tecnológico e da poupança interna. Os problemas com que actualmente se debatem irão agravar-se por força do choque que o livre comércio irá produzir em todo o tecido económico e social desses países. A pobreza em vez de recuar, irá aumentar, devido ao desemprego, à falta de cuidados de saúde e de educação, e então, perante as horríveis condições de vida, assistir-se-á ao incremento dos fluxos migratórios em direcção à Europa. Estudos realizados pela CNUCED, pela FAO, pelo PNUD e pela CECA ( Comissão Económica para África) das Nações Unidas, apontam nesse sentido. Estamos, por conseguinte, perante uma política que pretendendo ter como objectivo central a erradicação da pobreza, como está consignado no artigo 1º do Acordo de Cotonu, acaba por ter resultados diametralmente opostos.

Os estudos mandados realizar pela Comissão Europeia, para avaliar os impactos dos APE,foram efectuados por país, isto é caso a caso, e sem dispôr de garantias sobre a seriedade desses estudos, pois não houve a supervisão de uma organização de reconhecida competência na matéria, como por exemplo a CNUCED ( Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento ). Por outro lado, é no mínimo, estranho que a Comissão não tenha uma avaliação de conjunto, sobre os efeitos do livre comércio. O estudo do impacto do APE na Guiné-Bissau, realizado pela empresa CESO - Consultores Internacionais em Julho de 2006, aponta, no caso de um desmantelamento total e imediato das barreiras aduaneiras, para uma perda de cerca de 40% de receitas no conjunto dos direitos aduaneiros, imposto especial de consumo, e imposto geral sobre vendas, que constituem o essencial da fiscalidade indirecta da Guiné Bissau. Recorde-se que a fiscalidade indirecta representa o grosso das receitas fiscais do país. Trata-se de um cenário quase catastrófico para o país, que se veria privado de uma parte significativa de receitas fiscais, com consequências nefastas, sobre o nível do fornecimento de bens e serviços públicos, já de si, insuficientes como o provam a incapacidade de o Estado pagar os salários e pensões da função pública, bem como a prestação de cuidados de saúde e educação. Se hoje a situação económico-financeira do país, já é de ruptura total, o cenário que nos espera no quadro da total liberalização do comércio, seria de catástrofe.

Como engodo, a Comissão Europeia, acena os países ACP, com financiamentos através do FED - Fundo Europeu de Desenvolvimento, o instrumento financeiro da cooperação UE - ACP. É uma forma de pressão "suave" para constranger à assinatura dos APE, transformando a política de cooperação no princípio de "aid for trade" (ajuda por comércio). Trata-se de uma proposta desonesta, reconhecida por vários analistas económicos e políticos. A crítica mais contundente veio do seio da própria União Europeia, através de um relatório da Assembleia Nacional Francesa de 5 de Julho de 2006 sobre as negociações dos acordos de parceria económica, apresentado pelo deputado Jean-Claude Lefort. Pela importância e pertinência deste relatório, permito-me citar algumas passagens:

" ... se a Comissão persiste ( nas negociações dos APE ) a Europa cometerá um erro político, táctico, económico e geoestratégico.
Com efeito a questão que se coloca é: em que medida os APE ajudarão a África subsariana a atingir os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio adoptadas pela ONU em Setembro de 2000? Em nada, sabendo-se que alguns desses objectivos não serão atingidos por alguns países senão daqui a um século, de acordo com o PNUD. Poderemos nós assumir a responsabilidade de conduzir a África, que albergará dentro de alguns anos, o maior número de pessoas vivendo com menos de um dólar por dia, para um caos ainda maior, sob a capa de respeitar as regras da OMC - Organização Mundial do Comércio"? "
Num outro passo do citado relatório da Assembleia Nacional Francesa, os deputados recomendam:
" ...o regime actual de acesso das exportações dos países ACP ao mercado europeu deve ser mantido e acompanhado de um grande programa de assistência técnica nos domínios sanitários e fitosanitários, e a modernização do aparelho produtivo desses países;
...a liberalização das trocas comerciais com a União Europeia só deve ter lugar após uma fase de consolidação das uniões económicas e aduaneiras de África, Caraíbas e Pacífico."

Várias outras vozes se têm levantado contra os APE, desde as ONG's, às igrejas e suas organizações, como por exemplo a Caritas, os sindicatos, e outras organizações da sociedade civil. Todos são unânimes quanto à extemporaneidade da aplicação do livre comércio, no actual estádio de desenvolvimento dos países africanos ( excepção feita à África do Sul ). Trata-se de uma competição desigual, e com regras de jogo viciadas! Viciadas, porque as políticas de subsídios agrícolas da PAC ( Política Agrícola Comum ) da UE, permite a exportação de produtos abaixo do preço real, isto é em regime de "dumping" o que inviabiliza qualquer concorrência africana; viciadas, porque o grau de desenvolvimento dos países europeus em relação à maioria dos países africanos, dão-lhes clara vantagem competitiva. Usando uma metáfora, é como um combate de "boxe" em que os oponentes fossem um peso-pluma e um peso pesado, o desfecho está à vista, pois é mais do que previsível.
Assim, tendo em consideração que:

- a obrigação de liberalizar as trocas comerciais, nomeadamente dos produtos agrícolas, representa um perigo para a agricultura africana, que é ainda arcaica e baseada essencialmente em trabalho manual;

- a abertura dos mercados africanos às exportações da UE, em regime de reciprocidade, é fictícia, já que os produtos europeus chegam aos mercados de África, a preços artificialmente baixos;

- o acesso aos mercados de exportação não beneficiarão os pequenos produtores africanos, que são a maioria;

- os preços de exportação para os mercados europeus tendem a baixar devido à degradação dos termos de troca, como se tem verificado ao longo das últimas décadas, anulando desse modo todas os eventuais benefícios;

- a eliminação ou redução de direitos aduaneiros, provocará uma redução drástica das receitas públicas dos Estados, com consequências graves na prestação de serviços sociais básicos, e na capacidade de investimento;

Os Acordos de Parceria Económica deverão ser rejeitados, ou pelo menos suspensas as negociações de modo a permitir um período de debate e análise dos impactos sobre as economias dos países ACP e muito em particular dos países africanos. Para tal, o papel da sociedade civil, e das suas organizações é indispensável! Todos teremos de levantar as nossas vozes para evitar o "afundamento" do nosso continente! O paradigma da cooperação entre a Europa e a África tem que mudar, mas a alternativa que nos é apresentada, criará uma dependência ainda maior! Não queremos uma recolonização de África, e por isso, os APE nos moldes em que nos são propostos deverão merecer a nossa rejeição! Caso contrário, espera-nos o agravamento da situação económica e social dos nossos países, e assim sendo só nos resta partir, fugindo da pobreza da fome e da doença, engrossando as correntes migratórias em busca da ilusão do "El Dorado" europeu!